domingo, 24 de maio de 2009

História do Brasil: República Velha ou Oligarquica, A Era Vargas, populismo, Ditadura Militar e Nova República.‏

Como era o Brasil no final do século 19?
Era um país de fronteiras definidas, não muito diferente do Brasil de hoje. Porém, mesmo no início do século 20, havia vastas regiões não ocupadas – como grandes áreas do Oeste de São Paulo, onde viviam índios. Do ponto de vista da produção, houve um grande impulso no Centro-Sul, basicamente resultante do café, e também no Sul, com a instalação da pequena propriedade. Essa pequena propriedade, dedicada ao cultivo de produtos como trigo e uva e à fabricação de vinho, se baseava na imigração de colonos alemães, que começaram a chegar ali desde 1820, antes da imigração em massa que ocorreria no próprio século 19. No Nordeste, talvez o fenômeno mais interessante seja a alteração do sistema de produção de açúcar, com a melhoria das técnicas, sobretudo a partir da construção dos grandes engenhos novos, chamados de engenhos centrais.
Quais as características do começo do período republicano?
A Constituição republicana de 1891 adotou o modelo da República federativa, isto é, o Brasil foi dividido em vários estados, reunidos numa federação. Houve uma descentralização dos poderes, das atribuições e dos direitos dos estados, que ganharam autonomia para contrair empréstimos no exterior e constituir suas próprias forças públicas. Sob o aspecto social e ideológico, a proclamação da República se deveu, como vimos, a duas forças muito diferentes, os militares e as elites civis dos grandes estados. Nos primeiros tempos, predominaram os militares – basta pensar nos governos de Deodoro e Floriano –, mas logo depois, a partir de Prudente de Morais, instituiu-se uma República civil.
De onde veio o modelo da Primeira República?
A Constituição de 1891 adotou em grandes linhas o modelo da Constituição dos Estados Unidos, cuja característica é o presidencialismo, quer dizer, o presidente é eleito com mandato e tem poderes independentes do Congresso. Além disso, também seguindo o modelo americano, houve uma divisão entre três poderes: o Executivo, que executa as leis ou encaminha projetos de lei para o Congresso; o Legislativo (Câmara dos Deputados e Senado), que faz as leis; e o Judiciário, que julga conflitos entre os cidadãos e interpreta as leis, inclusive a Constituição.
Como era o sistema eleitoral?
Tal como ocorria nos últimos anos do Império, o voto continuou a ser permitido apenas às pessoas alfabetizadas, e não era secreto. Além disso, não existia uma Justiça Eleitoral, como existe hoje, para fiscalizar as eleições. Nesse quadro, dificilmente o resultado das eleições correspondia às intenções reais dos cidadãos. A participação dos eleitores era muito pequena, mas isso não surpreende, pois a situação era idêntica em outros países, mesmo nos mais desenvolvidos.
E quanto às relações do Estado com a Igreja Católica?
Nesse campo a mudança foi grande. No Império, o regime vigente era de padroado, isto é, o Estado pagava o clero. Mas as elites civis republicanas, sob forte influência de idéias liberais, cientificistas e laicas, não eram compostas de gente religiosa. Logo no começo da Primeira República aprovaram-se leis que tiraram da Igreja certas atribuições. Por exemplo: embora o casamento religioso continuasse a existir, o casamento civil, feito por um juiz de paz num cartório, passou a ser o único legitimamente reconhecido. O mesmo se deu com o registro de nascimento, que deixou de ser feito nas paróquias para ser feito em um cartório de registro civil. E houve a secularização dos cemitérios, isto é, eles deixaram de pertencer a uma religião para se abrir a todas as religiões, ou até a quem não tivesse religião. Houve de fato uma separação entre Igreja e Estado, e a Igreja Católica deixou de ser a oficial. De certo modo, isso foi mais um bem do que um mal para a Igreja, que se livrou da subordinação e precisou reforçar seus quadros, melhorar sua atividade e aparecer como força espiritual autônoma.
Qual era a situação no meio rural?
No começo do século 20, algumas regiões progrediam muito, mas amplas extensões no campo eram extremamente pobres, carentes, com populações que ficaram à margem do progresso. É o caso de quase todos os estados do Nordeste, onde a grande maioria das pessoas servia de mão-de-obra a grandes proprietários ou cultivava uma terrinha, muito precariamente.
Foi nessa época que surgiu o arraial de Canudos?
Aconteceram alguns episódios sociais importantes, como o arraial de Canudos, que se instalou no norte da Bahia por volta de 1897, tendo como personagem central uma figura urbana, Antônio Conselheiro, um homem místico que fazia uma pregação monarquista, contra a República. Sertanejos atacados pela seca e pelas más condições de vida buscaram no arraial, em um sistema comunitário, uma perspectiva de melhoria. O fenômeno era produto das enormes carências da população sertaneja, mas o governo da República encarou-o como uma ameaça monarquista e resolveu liquidá-lo. Essa decisão desgastou o governo de Prudente de Morais, o primeiro presidente civil, pois, surpreendentemente, sucessivas operações militares fracassaram ao enfrentar o arraial de Canudos, antes de conseguir dizimar quase toda sua população.
O que foi a política do café-com-leite?
O pitoresco nome de república café-com-leite se refere ao predomínio de dois estados, na Primeira República: São Paulo e Minas Gerais, que tinham por base econômica o café e o leite. Mas nem tudo no Brasil, do ponto de vista político, se resumia à aliança entre São Paulo e Minas. Também há quem se refira a esse período como “república dos coronéis”, pelo predomínio da figura do coronel – título dado a antigos coronéis da Guarda Nacional que controlavam uma área, arregimentavam a população e seus votos. Mas de fato podemos dizer que tínhamos uma república oligárquica. Em sua origem, a palavra oligarquia significa governo de poucos. A Primeira República foi exatamente isso: dominada por grupos concentrados nos estados maiores, que, organizados em partidos estaduais, decidiam quem seria o presidente. Era uma espécie de “clube dos notáveis”, no qual a população praticamente não influía.
O coronelismo existiu em todas as regiões?
É comum se pensar no coronelismo como um fenômeno do Nordeste, mas ele existiu em São Paulo e no Rio Grande do Sul, só que de maneira diferente, por exemplo, daquele de certas áreas da Bahia, onde verdadeiros “senhores da guerra” ditavam as ordens, à frente de seus exércitos privados, ameaçando até o governador do estado. Já no Rio Grande do Sul, muitos dos coronéis não eram proprietários de terra, e sim comerciantes.
Os estados eram de fato autônomos?
Quando falamos em autonomia dos estados na Primeira República, é preciso pensar que existiam alguns de primeira grandeza, estados fortes, e outros de segunda ou terceira grandeza, estados fracos. Os interesses de São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul e, em certa medida, Bahia e Pernambuco, tinham um peso bem específico.
Qual era o panorama econômico da época?
A Primeira República foi caracterizada pela agricultura de exportação, na qual o café ocupava o posto mais importante. A partir de 1880, e por quase trinta anos, a borracha da Amazônia foi o segundo produto de exportação, superando o açúcar. Era grande a demanda desse produto no que hoje chamamos de Primeiro Mundo: no início, quando se difundiu a moda da bicicleta, com pneus de borracha; e, depois, com o surgimento do automóvel. A riqueza gerada por ela mudou a fisionomia de Manaus e Belém, as capitais do Norte. Quem nunca teve benefícios foi o seringueiro, que trabalhava na mata. Mas por volta de 1910 começou a crise; em primeiro lugar pela competição das plantações inglesas da Malásia, na Ásia; além disso ocorreu aqui o ataque de uma série de pragas. Foi-se assim toda a antiga riqueza, mas restou muita beleza, como o Teatro Amazonas, em Manaus, ou o Teatro da Paz, em Belém, restaurados recentemente.
Por que houve imigração?
Desde meados de 1870, se iniciou um fenômeno de imigração em massa, principalmente de colonos italianos; em parte eles se dirigiam para o Sul, onde já havia imigrantes alemães. Outros se estabeleceram no Centro-Sul, especialmente em São Paulo. Esse movimento se deveu a dois fatores: diante das condições de pobreza na Europa muitas pessoas sonhavam com “fazer a América”, como se dizia na época; além disso, com a abolição, os fazendeiros precisavam substituir a mão-de-obra dos escravos. Para atrair imigrantes da Europa, foram mobilizados muitos recursos. Em São Paulo foi construída a Hospedaria dos Imigrantes (hoje Museu do Imigrante), onde eles eram recebidos e depois encaminhados para as fazendas de café. Mas muitos imigrantes permaneceram nas cidades, ou retornaram do campo após uma experiência. Viam nas cidades maiores oportunidades de ganho e mais liberdade do que no duro regime de trabalho das fazendas de café. Depois dos italianos vieram os espanhóis e, nos primeiros anos do século 20, começaram a chegar os japoneses – estes de fato se fixaram por muito tempo no campo.
Como fenômeno social, a imigração deu certo no Brasil?
Em termos gerais, sim, mas isso não significa que todos tenham sido bem-sucedidos. Muita gente permaneceu pobre no Brasil, ou voltou para seus países. A vida do colono do café era difícil, embora existissem oportunidades de ascensão social. Muitos imigrantes conseguiram avançar na vida e integrar-se à sociedade brasileira.

Como ocorreu o início da industrialização?
Havia uma frase comum na Primeira República: “o Brasil é um país essencialmente agrícola”, pressupondo que deveríamos nos ater às atividades agrícolas e esquecer tudo o mais. Apesar disso, houve certo impulso de industrialização no país, em áreas do Nordeste, em São Paulo e no Sul. Em São Paulo resultou da própria atividade cafeeira, que gerou expansão econômica e urbanização, criando um mercado interno para os produtos industriais. Não chegou a ser um grande surto, mas é importante lembrar isso para não pensar que a indústria começou em 1930.

Quais eram os movimentos sociais de maior expressão?
O integralismo, de extrema direita, e o movimento comunista, de extrema esquerda. O integralismo, inspirado no fascismo, tinha como seu líder mais importante Plínio Salgado, político e intelectual de São Paulo, e contava com base popular. Os integralistas eram nacionalistas, pretendiam impedir a ação dos chamados “trustes estrangeiros” e defendiam um país organizado de cima para baixo, sem liberdades democráticas, controlado por um partido único. Era um movimento profundamente antidemocrático e com muitos traços tradicionalistas. Seu lema era “Deus, Pátria e Família”.

Do outro lado, estavam os comunistas ligados à União Soviética. O principal chefe comunista foi Luís Carlos Prestes, que rompera com os tenentes em maio de 1930 e viria a ser o maior líder do Partido Comunista do Brasil. Os comunistas pregavam uma revolução denominada democrático-burguesa, como etapa para uma revolução socialista. Também eram nacionalistas, mas enquanto os integralistas se aproximavam principalmente da Itália, os comunistas aderiram à União Soviética. Também se distinguiam dos integralistas por uma atitude mais aberta no plano do comportamento (por exemplo, a defesa do divórcio), pela defesa das minorias e pela denúncia do racismo.
Como esses movimentos se relacionavam com Getúlio?
Os integralistas apoiaram Getúlio na esperança de acumular forças dentro do governo, com o qual aliás tinham afinidades. Os comunistas, por sua vez, formaram a Aliança Nacional Libertadora (ANL), que pretendia ser uma grande frente popular contra o governo e a favor de reformas significativas. Getúlio mandou fechar a ANL e instituiu uma legislação repressiva, a Lei de Segurança Nacional. Na ilegalidade, os comunistas se insurgiram, em novembro de 1935, em um movimento militar mal coordenado que acabou em fracasso. Existem fortes indícios de que o governo Vargas já sabia dos preparativos da insurreição, tendo recebido informações do serviço secreto inglês. O fato é que essa revolta serviu para Getúlio desfechar uma onda de repressão.
Quais as conseqüências dessa onda de repressão?
Getúlio e a cúpula do Exército usaram a insurreição como pretexto para preparar o caminho da instalação de um regime autoritário, que se distinguiria obviamente dos comunistas, mas também dos integralistas. A expectativa destes era chegar ao poder pela Aliança Integralista Brasileira, transformando-a em um partido único que serviria de base para um regime semelhante ao fascismo. Mas não eram estas as intenções do governante, para quem a existência de partidos levaria à desorganização do país. Entre novembro de 1935 e 10 de novembro de 1937 criaram-se todas as condições para que o governo Vargas, eleito legalmente pelo Congresso, de forma indireta, se transformasse num governo ditatorial, por meio do golpe que instituiu o Estado Novo – uma operação realizada praticamente sem resistência.
Como o integralismo se firmou?
Uma das razões do prestígio do movimento integralista se relaciona com a ascensão das ideologias antiliberais, que ganharam força após o início da crise mundial de 1929. Na época, parecia que o capitalismo e as idéias liberais estavam destinados a desaparecer. Ganharam prestígio as idéias autoritárias, o totalitarismo de esquerda e de direita, os sonhos revolucionários. Para muitos, o integralismo parecia um eixo seguro, em defesa da ordem, imbuído de patriotismo, de respeito a Deus e à família, contra os riscos desagregadores dos comunistas, vistos como ateus, inimigos da família e da propriedade. Essas coisas encantaram setores da classe média brasileira.
E com relação aos comunistas?
Em parte, os comunistas ganharam prestígio por sua identificação com a União Soviética, país que muitos acreditavam, ilusoriamente, ser o reino da liberdade e da igualdade. Ao mesmo tempo, havia os atrativos da mudança de costumes, da possibilidade de divórcio, da luta contra o imperialismo e o racismo, a favor do nacionalismo.
O Estado Novo teve apoio popular?
O Estado Novo foi a primeira ditadura do Brasil, embora fosse falsamente apresentado como a verdadeira democracia. Suprimiram-se as eleições, os partidos e a liberdade de expressão. Introduziu-se a censura e a tortura a presos políticos, em especial comunistas, tornou-se prática corrente. Mas o Estado Novo tinha apoio popular, mesmo silencioso. Lembremos das medidas favoráveis aos trabalhadores urbanos. Habilmente, Getúlio captou a seu favor as comemorações do 1º de maio, um dia de luta, aproveitando para reforçar os laços simbólicos com a classe trabalhadora. Em seu discurso solene, que começava com a expressão: “Trabalhadores do Brasil”, anunciava algum novo benefício. Havia aquela expectativa: o que Getúlio vai anunciar no 1º de maio? O Estado Novo, um regime repressivo, que estabeleceu a tortura como método, ganhou a simpatia da massa popular. É preciso entender essas diferenças para não fazer uma história em preto-e-branco, quando ela não é nem preta, nem branca, mas tem muito cinza, muita mistura de cores.
Qual era o quadro da política externa?
O mundo estava dividido em grandes potências e o Brasil tinha de tomar uma posição. O regime getulista se aproximara dos países totalitários, Alemanha e Itália, por razões ideológicas e por interesses comerciais: os alemães, por exemplo, compravam o algodão brasileiro e quebravam a hegemonia dos Estados Unidos. No governo havia os que defendiam a aproximação com Alemanha e Itália e os partidários de Inglaterra, França e Estados Unidos. Com o início da guerra, em 1939, foi preciso fazer uma opção; Getúlio, que mostrara muita simpatia pela Alemanha e pela Itália, acabou pendendo para as forças democráticas, por razões de ordem prática. Ele percebeu o significado da posição do Brasil no mundo ocidental, com a enorme influência do “grande irmão do norte”, os Estados Unidos. Fugir desse campo seria uma aventura extremamente arriscada, e em poucos meses, com a Segunda Guerra Mundial já iniciada, ele se decidiu a favor das potências aliadas. As investidas dos alemães contra a Marinha brasileira apressaram a ruptura de relações com os países do Eixo – Alemanha, Itália e depois Japão – e finalmente houve a declaração de guerra contra esses países. Em um clima patriótico, criaram-se condições para que o Brasil mandasse a Força Expedicionária Brasileira, a FEB, para lutar na Itália. Quando os “pracinhas” retornaram em 1945, no fim da guerra, foram recebidos como heróis nas cidades brasileiras.
O que determinou a crise do regime?
O Estado Novo foi um período curto, de novembro de 1937 até 1945, e seu fim resultou de uma conjugação de fatores externos e internos. A vitória das forças democráticas na Segunda Guerra deu novo prestígio à democracia no Brasil, pelo menos nos setores da sociedade que tinham mais voz: jornalistas, intelectuais e profissionais liberais. Esse clima ajudou a engrossar a oposição ao Estado Novo e criou a necessidade de preparar o caminho para a democratização. Sensível a esse novo quadro, Getúlio no entanto fez uma jogada arriscada: tentou se apoiar na mobilização popular, como nunca fizera antes. Além dos setores políticos e de trabalhadores que sempre haviam estado a seu favor, buscou também se aproximar dos comunistas, que estavam na ilegalidade, muitos deles presos. Começou o movimento chamado “queremismo” (nome tirado do slogan “queremos Getúlio”), reivindicando a convocação de eleições para uma constituinte, mas mantendo Getúlio no poder até que se promulgasse a nova Constituição e fossem feitas novas eleições.
Como terminou o Estado Novo?
A cúpula militar, que até então apoiara o ditador, não aceitou o rumo dado pelo movimento queremista e depôs o presidente, com a participação de grupos da elite civil. Vargas conservava intacto seu prestígio junto à população e a determinados setores, como a maioria dos industriais. Assim, os que o depuseram não pretenderam colocá-lo fora do jogo político, mas sim tirá-lo do poder central, sem cortar todas suas asas. Getúlio foi deposto em outubro de 1945 e substituído provisoriamente pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro José Linhares. Seguiram-se as eleições gerais, em dezembro daquele ano.

Chamamos de processo histórico o desenrolar dos acontecimentos ao longo da história. Como esses acontecimentos têm uma lógica, uma relação de causa e efeito, damos a isso o nome de processo."

Quais eram os partidos políticos antes da queda de Vargas?
Nessa época começou a constituição dos partidos que iriam existir ao longo dos anos democráticos, entre 1945 e 1964. Os principais foram a União Democrática Nacional (UDN), que representava os opositores ao governo; o Partido Social Democrático (PSD), de certo modo uma invenção de Vargas, representando sobretudo a burocracia do Estado Novo e setores rurais; e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), também imaginado por Vargas, pretendendo organizar a classe trabalhadora urbana. A novidade é que se formaram partidos nacionais e não se permitiu a criação de partidos estaduais.
O que ocorreu nas eleições presidenciais de 1945?
Quando o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares, assumiu o poder, cuidou de preparar as eleições de 2 de dezembro de 1945, que já estavam marcadas. Houve dois candidatos principais: o general Eurico Gaspar Dutra, figura central do Estado Novo; e o brigadeiro Eduardo Gomes, o candidato da UDN, a oposição. Curiosamente, os dois eram militares, mas pode-se dizer que Eduardo Gomes era um militar liberal e Dutra vinha da tradição autoritária do Estado Novo. Para surpresa de muita gente, Dutra venceu com uma larga margem de votos.
Como se explica a vitória de Dutra?
Ele contou com a máquina dos governos estaduais, que controlavam principalmente os votos do campo, e também com a burocracia do Estado Novo, que se mantinha intacta. Além disso, conquistou o voto da classe trabalhadora e de setores da classe média urbana, graças ao apoio de Getúlio, nos últimos dias da campanha. Getúlio concorreu aos cargos de deputado e de senador por vários estados (na época isso era permitido) e sua votação foi consagradora, demonstrando que ele fora afastado da presidência, mas não do jogo político. Optou por ser senador pelo Rio Grande do Sul.
E quanto às mudanças na Constituição?
Além do presidente, a eleição se destinou também a escolher uma Assembléia Constituinte, que seria encarregada de elaborar uma nova Constituição em substituição à baixada pelo Estado Novo em 1937, de perfil autoritário. Pode-se dizer que a Constituição de 1946 tinha características liberal-democráticas. Ela estabeleceu a divisão entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e a representação pelo voto individual para a Câmara e o Senado. Continha um capítulo garantindo liberdades democráticas, mas no campo sindical representou uma continuidade do Estado Novo. Foi mantida a organização dos sindicatos de cima para baixo, dependente de uma espécie de carimbo oficial. Um ponto significativo da Constituição de 46 foi estabelecer definitivamente o voto para todas as mulheres maiores de 18 anos.
Qual era o quadro da política internacional na época?
Até 1947, 1948, havia um acordo entre as potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, uma espécie de lua-de-mel entre a União Soviética e os Estados Unidos, mas não durou muito. Por trás do acordo estava a necessidade de enfrentar as potências do Eixo (Alemanha, Japão e Itália), e por isso ele se rompeu dois anos depois do fim da guerra. Para a União Soviética e os países ligados a ela no Leste Europeu, os chamados satélites, os objetivos estavam voltados à expansão do comunismo. Isso evidentemente se chocava com as perspectivas dos países democráticos e com a hegemonia americana, e assim se iniciou a chamada guerra fria, entre os dois blocos em que se dividiu o mundo.
Como a guerra fria se refletiu na política brasileira?
De várias formas. Uma delas foi o comportamento em relação ao Partido Comunista. No ambiente de confraternização que se seguiu à Segunda Guerra, houve a legalização imediata do Partido Comunista. A guerra fria criou um divisor de águas. Por meio de um processo legislativo no Congresso, o Partido Comunista, que naquele tempo tinha prestígio, quadros e popularidade, mais uma vez se tornou clandestino.
Como se deu a volta de Getúlio Vargas ao poder?
Nas eleições de outubro de 1950 Getúlio Vargas voltou ao poder, eleito presidente pelo PTB. Ele não perdera sua popularidade ao longo do governo Dutra e seus adversários nas eleições não eram tão expressivos: Cristiano Machado, do PSD, e o brigadeiro Eduardo Gomes, da UDN (que já havia sido derrotado em 1945). (Aliás, foi uma das raras vezes em que o PTB e o PSD se dividiram; ao longo dos anos, pois em geral atuaram em aliança.) Getúlio contou com um conjunto de forças de apoio – do empresariado nacional à classe trabalhadora, em particular os trabalhadores urbanos, mas esse seu retorno ao poder era em circunstâncias bem diferentes das anteriores. Agora precisava submeter-se ao processo democrático, o que implicava procurar entendimentos e aceitar divergências, jogo no qual não se sentia à vontade. Ao mesmo tempo, enfrentava divisões no Exército, disputas na sociedade e um quadro econômico que se agravava, especialmente com o aumento da inflação. Esses fatores resumem as dificuldades de Getúlio para se manter no poder, gerando a crise que o levou ao suicídio.
Havia cisões no interior das Forças Armadas?
A guerra fria introduziu um elemento nítido de divisão no interior das Forças Armadas. Em linhas gerais, formaram-se duas correntes, especialmente no Exército: a nacionalista e a que depreciativamente era conhecida como “entreguista”. No plano da política internacional, os nacionalistas adotavam uma postura de independência com relação aos Estados Unidos; entre eles havia até simpatizantes da União Soviética e do PCB. Os “entreguistas” pleiteavam maior aproximação com a política americana. Na política interna, os nacionalistas defendiam o papel do Estado no desenvolvimento. Já os “entreguistas”, embora não pretendessem retirar o Estado da economia, queriam que aumentasse a participação do capital privado na vida econômica. Essa disputa entre nacionalistas e “entreguistas” vai percorrer toda a história brasileira daí para a frente, até o movimento militar de 1964. Ocorre então a politização do Exército e do Clube Militar, que se torna o centro de disputas violentas entre as duas facções.
Qual era o significado do populismo?
Foi uma política assumida por Getúlio nos últimos anos do Estado Novo, pela qual ele procurou fazer, no plano político, uma aliança entre o Estado, os empresários industriais e os trabalhadores urbanos organizados. Mas no segundo governo Vargas o populismo tomou um aspecto mais mobilizador, quer dizer, o presidente acreditava que podia mobilizar as classes trabalhadoras urbanas e se apoiar nelas, como recurso político para realizar seus objetivos. Um dos momentos de mobilização mais intensa foi o da luta pelo monopólio estatal do petróleo, que deu origem à formação da Petrobras. Essa luta mostrou, na realidade, que havia mais possibilidade de mobilizar o país em torno de valores nacionais, e não de classe social. O nacionalismo econômico mobilizou trabalhadores, classe média e empresários, com forte influência do próprio governo e dos comunistas, que estavam na ilegalidade, garantindo o monopólio estatal do petróleo, aprovado no Congresso em 1953.
Qual era a reação ao populismo de Getúlio?
Esse populismo assustou setores conservadores, especialmente no Exército. Um dos personagens centrais do esquema populista foi João Goulart, conhecido pelo apelido de Jango, que foi ministro do Trabalho de Getúlio. Ele vinha do Rio Grande do Sul, do meio social do presidente, e teve um papel importante na mobilização populista – controlava os sindicatos e dava-lhes apoio, ao mesmo tempo em que costurava o jogo político no meio sindical. O temor ao getulismo mobilizador teve muito a ver com certas fantasias, como a da República sindicalista, a idéia de que os sindicatos tomariam o poder. Isso em parte se explica pelo ambiente daqueles anos, também em outros países como Argentina e Chile, onde emergia a fórmula política populista. Foi a época de grande prestígio de Perón na Argentina, o general que acabou sendo derrubado pelos militares em 1955.
Houve greves no segundo governo de Getúlio?
As greves em geral foram instrumentadas pelo esquema populista, quer dizer, trabalhava-se para que as reivindicações dos grevistas servissem aos propósitos do governo. Não era, porém, uma manipulação pura e simples dos trabalhadores. Na realidade, Getúlio e Jango tratavam de apoiar os grevistas, acolher algumas reivindicações e ao mesmo tempo evitar que o movimento escapasse dos limites. Mesmo assim, alguns fugiram à influência do governo. O caso mais expressivo foi em São Paulo, com a chamada greve dos 300 mil, que começou pelos têxteis. Não foi controlada pelo Ministério do Trabalho, e já apontava para a existência de algumas forças que começavam a se aproximar da figura de Jânio Quadros.
Quais as principais razões para a crise do governo Vargas?
A crise, que acabou levando ao suicídio do presidente, tem uma série de razões: o populismo mobilizador, a inflação, a concessão de vencimentos maiores para determinados setores do Estado, enfim, um conjunto de circunstâncias foi prejudicando a estabilidade do governo. Mas o que detonou a crise foi o acirramento da luta política. Naqueles anos, se intensificou a divisão entre os partidários de Vargas e seus inimigos, que estavam na UDN. O jornalista Carlos Lacerda, diretor do jornal carioca Tribuna da Imprensa, se destacava na luta feroz contra Getúlio. No Palácio do Catete, sede do governo federal, a guarda pessoal de Getúlio teve a infeliz idéia de eliminar Carlos Lacerda. Esse atentado foi um desastre. Primeiro, porque o atentado em si era uma idéia absurda, indigna; depois, porque a ação foi muito mal executada, e provocou a morte do major Vaz, da Aeronáutica, que estava ao lado de Lacerda, quando este entrava em seu apartamento, na rua Toneleros, no Rio de Janeiro. Desencadeou-se uma forte indignação, e a Aeronáutica se colocou em pé de guerra. A oposição começou a acusar de corrupção os íntimos de Getúlio e o próprio presidente; Getúlio admitiu que havia um mar de lama a sua volta, ignorado por ele. Encurralado, acabou dando um tiro no peito, no trágico episódio de 24 de agosto de 1954.
O que representou para o país o suicídio de Getúlio?
O suicídio de Vargas mobilizou a população das grandes cidades – Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, para onde o corpo foi levado. Essa mobilização impediu que se efetivasse o golpe militar já tramado. Um personagem que renunciava à vida por razões políticas era talvez um acontecimento único no quadro nacional; Getúlio se converteu em mártir, correram lendas de que ele teria sido assassinado. Contribui para a construção do mito o fato de que ele deixou uma carta-testamento, acusando forças retrógradas e antinacionais de terem organizado uma terrível conspiração, e que ele escolhera a morte para não ceder. Não foi possível estabelecer um regime militar, o que era defendido por setores como a Aeronáutica; o vice-presidente, Café Filho, assumiu o poder. Ele adotou uma política favorável aos setores que haviam concorrido para o suicídio de Getúlio Vargas, e assim não houve grandes reações. O calendário eleitoral foi respeitado e realizaram-se eleições em outubro de 1955.
Como transcorreram as novas eleições?
Houve a clássica união entre o PSD e o PTB, que lançaram em conjunto a candidatura à presidência da República de Juscelino Kubitschek, ex-governador de Minas Gerais, tendo como vice-presidente João Goulart (PTB). Juscelino derrotou o general Juarez Távora, candidato da UDN, e Ademar de Barros, político de São Paulo. Foi eleito com um percentual baixo de votos (aproximadamente 36%) – nessa época não existia o processo eleitoral em dois turnos.
A posse de Juscelino foi tranqüila?
Não, entre a vitória de Juscelino e sua posse houve muitas complicações. A UDN e o setor militar, adversário do getulismo, se opuseram fortemente à posse do eleito; mais uma vez, surgiu a tentativa de interrupção do processo democrático. O vice-presidente Café Filho sofreu um ataque cardíaco e foi substituído por Carlos Luz, aliado dos chamados golpistas. Nesse momento de incerteza e risco ocorreu o chamado golpe preventivo do general Lott, em novembro de 1955, que garantiu a posse de Juscelino, em janeiro de 1956.
E depois da posse, houve estabilidade?
Um fato muito curioso na história política brasileira dos anos 50 é que o governo iniciado com tantas incertezas foi bastante estável. A cúpula das Forças Armadas e Juscelino se ajustaram, apagando, pelo menos provisoriamente, problemas do passado. Duas aventuras da Aeronáutica, os episódios de Aragarças e o de Jacareacanga, não representaram ameaça. Ao mesmo tempo, Juscelino ganhou prestígio ao implantar o programa que ficou conhecido como Plano de Metas. Por esse plano, Juscelino passou do anterior nacionalismo econômico para uma espécie de desenvolvimentismo econômico. Admitindo o papel importante do Estado e insistindo no desenvolvimento, Juscelino resolveu abrir a economia. O Estado continuou a ser muito importante, mas abriu-se espaço ao capital privado, tanto nacional quanto internacional. Isso deu origem à instalação da indústria automobilística, com o quase monopólio da Volkswagen durante muitos anos. Os anos JK apresentaram resultados econômicos impressionantes.
De onde surgiu a idéia de construir Brasília?
O Programa de Metas incluía a considerada “meta-síntese”, a criação de Brasília, que despertou grande polêmica. A UDN e Carlos Lacerda reagiram agressivamente, mas a instalação da nova capital acabou transformando em realidade um velho sonho. A Constituição de 1891 já mencionava a construção de uma cidade, no centro do país, para ser a capital. Do ponto de vista urbanístico, foi uma realização impressionante, porque não havia nada em Brasília! No cerrado do Planalto Central se ergueu uma cidade, planejada pelos arquitetos Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, uma espécie de emblema do avanço da civilização, com seus problemas, mas também com suas virtudes, no Centro-Oeste do país.
Quais foram os problemas do governo Juscelino?
Um deles foi o crescimento da inflação, provocada em parte pela própria construção de Brasília. Outro problema econômico-financeiro diz respeito àquilo que hoje se chama de vulnerabilidade externa: o país vinha tomando empréstimos no exterior e tinha de pagar os juros desses empréstimos, o chamado serviço da dívida. Para fazer isso, muitas vezes recorria a organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, instituição que reúne vários países, sendo que seu principal contribuinte são os Estados Unidos. O FMI funciona como uma espécie de banco que empresta a países em dificuldade, mediante certas condições. Na ocasião, a política interna do governo brasileiro começou a não coincidir com a do FMI: para conceder empréstimos ao Brasil, o órgão impunha certas condições que o governo brasileiro não aceitava. Isso provocou uma ruptura com o FMI já em 1959, no final do governo Juscelino, que procurava retomar seu prestígio por meio de uma tirada nacionalista. Ao anunciar a ruptura de forma espetacular, até os comunistas que estavam na ilegalidade apareceram para apoiá-lo. Mas a questão das contas externas do Brasil não se resolvia por esse caminho.
Como se deu a sucessão de Juscelino?
Um dos nomes que participou da disputa foi o general Lott, figura respeitada nos meios militares, embora fosse fraco como candidato, mesmo com o apoio da aliança PSD-PTB. Seu adversário era Jânio Quadros, uma figura atípica na vida política brasileira; foi apoiado pela UDN, que viu nessa figura contraditória uma última oportunidade de chegar ao poder pelas vias democráticas. Lembremos que a UDN fora derrotada duas vezes com a candidatura de Eduardo Gomes, depois mais uma com Juarez Távora. Apesar do populismo janista, que não se enquadrava no modelo sisudo da UDN, o partido acabou sendo o principal suporte da sua candidatura.
Quem foi Jânio Quadros?
Jânio teve uma ascensão fulgurante na vida política. Foi eleito vereador em São Paulo, chegou a prefeito e depois a governador do estado. Ele descobriu como podia render politicamente o tema da luta contra a corrupção e a favor da moralidade. A UDN insistia nesse tema, mas era demasiado fechada, sem os recursos de comunicação que Jânio sabia usar. Com o símbolo da vassoura – para varrer toda a sujeira da vida política brasileira –, o homem de caspa nos ombros, cabelos caídos na testa e óculos pesados se transformou num grande personagem político e alcançou vitória expressiva nas eleições de 1960. Mas um fato curioso marcaria a história política dos anos seguintes: o vice-presidente eleito, João Goulart, não pertencia à mesma chapa do presidente. Na época, era possível votar em um candidato de um partido para presidente e no de outro partido para vice. Era o germe de um problema que se tornou muito grave com a renúncia de Jânio Quadros.
Como foi o governo de Jânio?
Esse governo durou poucos meses. Foi o primeiro presidente a tomar posse em Brasília, e ele detestava a cidade, sentia-se sozinho e isolado ali. Mas este é apenas um detalhe; o fato é que a política de Jânio foi muito contraditória. Para começar, ele se preocupava com coisas que não eram atribuições de seu cargo: implicou com os biquínis, com a briga de galos e coisas assim. Mas seria injusto dizer que Jânio somente tratou de coisas secundárias ou pitorescas; é mais importante verificar as contradições da posição janista. No plano econômico-financeiro, ele buscou realizar uma política positiva, embora restritiva, tentando reorganizar as finanças e controlar a inflação. Ao mesmo tempo, adotou uma postura progressista no plano das relações internacionais. Por intermédio do ministro Afonso Arinos, incentivou uma política externa independente. Pretendia fazer uma política que não se aproximasse nem dos Estados Unidos nem da União Soviética e, pródigo em ações espetaculares, provocou a fúria dos conservadores ao condecorar Che Guevara, o líder guerrilheiro de Cuba, com a grã-cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul.
Que fatos explicam sua renúncia?
Em pouco tempo, Jânio ficou quase só: os nacionalistas e a esquerda não confiavam nele, apesar da política externa independente. As forças partidárias que haviam apoiado sua candidatura também se afastaram, em grande medida. Carlos Lacerda, por exemplo, acusava-o de se colocar a serviço do comunismo, devido à política externa independente. Nessas circunstâncias, Jânio imaginou uma espécie de espetáculo de renúncia. Ele esperava que, diante da renúncia, as forças políticas lhe dariam maiores poderes e mais autoridade. No fundo, a renúncia de Jânio, que se disse atacado por forças terríveis – que ele nunca esclareceu quais fossem –, teve a ver com traços da sua personalidade, mas também com uma manobra política que deu errado. Durante a campanha eleitoral, ele também renunciara à candidatura e os líderes da UDN haviam corrido em busca dele. Parecia que o expediente daria certo. Só que deu inteiramente errado. Praticamente nada aconteceu; esse gesto profundamente negativo abriu um vazio, um trauma na vida política brasileira.
Quais foram as conseqüências?
Houve uma grave crise política. O vice-presidente, João Goulart, era fortemente criticado pelos meios militares. Durante algumas semanas, teve-se a impressão de que haveria um golpe, mas chegou-se por fim a um acordo, segundo o qual se instituiu um regime parlamentarista: o presidente teria alguns poderes, mas na realidade o Parlamento governaria, por meio de um primeiro-ministro. A fórmula durou pouco; realizou-se um plebiscito no qual, por ampla votação, foi restaurado o regime político presidencialista.
Como foi o governo de João Goulart?
Os últimos tempos do governo de João Goulart talvez possam ser definidos como de populismo radical. O esquema de sustentação populista agora se apoiava numa mobilização maior, de vários setores sociais. Foram anos de greves, algumas incentivadas pelo governo, outras não, e de mobilização no campo, com a formação das Ligas Camponesas no Nordeste. Ao mesmo tempo, criaram-se novas formas de movimento sindical – o Comando Geral dos Trabalhadores, que não existia antes na estrutura sindical, apoiava Jango e teve um papel importante nas mobilizações. Nessa época, a corda social ou a corda política, para usar uma imagem, esticou-se, tendendo para os extremos.
Quem conspirava contra Jango?
Alguns queriam de qualquer maneira liquidar com a tradição vinda do getulismo; eles odiavam João Goulart, que parecia ser a encarnação da República sindicalista, um passo no caminho do comunismo. Sempre houve, desde a posse de Jango, conspiração de setores civis e militares. De outro lado, havia a mobilização e a radicalização de amplos setores da sociedade, organizados no campo e nas cidades, que acreditavam poder levar avante uma política de transformações radicais. Falava-se muito numa reforma agrária radical, na lei ou na marra, ou numa reforma urbana que facilitaria aos inquilinos se tornarem proprietários das casas de aluguel. Havia toda essa expectativa radical, gerada também pela vitória da Revolução Cubana. Uma expressão importante de tudo isso foi o movimento estudantil organizado na União Nacional dos Estudantes, a UNE, com sede no Rio de Janeiro. Nos setores conservadores, temia-se cada vez mais o alcance das medidas transformadoras do governo. Mas um dado essencial selou o destino do governo de Jango: a profunda divisão nas Forças Armadas. Aquela divisão que vinha de nacionalistas e “entreguistas” tomava aspectos cada vez mais extremos; os nacionalistas se dispunham a levar adiante as transformações e os chamados “entreguistas” convenciam-se de que não havia condições de manter o governo Jango. A partir dessa radicalização os fatos se precipitaram.
Como foi desencadeado o golpe militar de 1964?
Em março de 1964, houve no Rio de Janeiro o famoso comício da Central do Brasil, no qual Jango anunciou uma série de medidas. Aos olhos dos conservadores foi o prenúncio das chamadas reformas de base, que conduziriam o país a um rumo desconhecido. Uma classe média atemorizada promoveu então uma significativa mobilização social – por exemplo, as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, realizadas em várias cidades sob a influência do setor conservador da Igreja. A tensão chegou ao extremo quando, no Rio de Janeiro, marinheiros rebelados se juntaram aos metalúrgicos em greve, no Sindicato dos Metalúrgicos. Para setores moderados das Forças Armadas, foi um sinal de quebra total da hierarquia, que instauraria a desordem no país. Não importa se essa apreciação era ou não verdadeira, o fato é que as Forças Armadas, com poucas exceções, chegaram à conclusão de que era preciso derrubar Jango e restaurar a ordem no país, pela via de um movimento militar, que se realizou mais ou menos a frio.
Não houve reações?
Praticamente houve apenas uma tentativa de resistência, por parte de Leonel Brizola, o principal líder da ala radical do PTB, que teve até divergências com seu cunhado Jango, mais realista e disposto à conciliação. A disposição de Brizola não encontrou eco e Jango foi deposto, exilando-se no Uruguai. Sob uma aparência de normalidade, foi empossado o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli. Mas, na realidade, naquele final de março e em 1º de abril de 1964 estava se instaurando o primeiro regime militar no Brasil, que duraria até o começo dos anos 80.
O golpe era inevitável?
Não é fácil responder a essa pergunta, porque de um lado os dados estruturais empurravam para a interrupção do processo democrático, mas de outro havia opções, possibilidades de tentar manter o jogo democrático, mesmo numa situação de tensões agudas. O que se pode dizer é que o golpe de 64 não teria ocorrido ou não seria inevitável se houvesse uma maior consciência da importância da democracia no Brasil. Naquele momento, os setores golpistas, civis e militares, apostaram na idéia de interrupção do processo democrático porque não tinham compromisso com a democracia. Mas houve ao mesmo tempo, em setores da esquerda e do governo Jango, a convicção de que ela era apenas um instrumento que podia ou não ser utilizado. Essa descrença no valor da democracia criou um clima favorável a soluções autoritárias e, nesse assunto, os militares golpistas evidentemente ganhavam dos civis. Houve figuras – por exemplo, San Tiago Dantas – que perceberam a importância da sustentação do regime democrático. Mas tais figuras foram atropeladas por uma maré de descrença na democracia e de crença em soluções de tipo autoritário, fosse à esquerda ou à direita

"A verdade histórica existe na medida em que a história não é uma fantasia: é feita a partir de fatos e processos sociais. Ao mesmo tempo, é objeto da interpretação do historiador. A história não apresenta uma verdade absoluta."

Qual a causa do golpe militar de 1964?
Em história, é complicado apontar causas, porque isso elimina a complexidade das explicações. Existem razões de ordem econômica e política que, entrelaçadas, explicam o movimento militar de 1964. As razões econômicas resultam de um quadro deteriorado em que a inflação chegava a quase 100% anuais, havia descontrole das contas do governo e também no setor externo da economia – e não houve êxito nas tentativas de encontrar saídas para essa situação, no final do período democrático. Do ponto de vista político, ocorreu o empate de diferentes forças que, na disputa do poder, acabaram se inibindo. Muita gente fala de paralisia do Congresso, pois ele praticamente deixou de funcionar. Ao lado disso, setores militares e civis estavam convencidos de que era preciso interromper o regime populista de João Goulart. Do outro lado, havia o comportamento do governo Jango, que, em vez de ajudar a manter o regime democrático, alimentava os setores de direita. Todos esses fatores explicam o movimento militar de 1964, assim como uma série de ações impensadas, como o comício da Central, no Rio de Janeiro, em que se anunciaram reformas sem que houvesse uma capacidade efetiva de realizá-las, e a ocupação do Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro. Em condições desse tipo, sempre ganha quem tem mais poder armado: como as Forças Armadas tendiam para o golpe, o golpe acabou saindo.
Houve participação dos Estados Unidos?
Dizer que os americanos estavam por trás do movimento militar de 1964 é simplificar demais. Trata-se de uma meia verdade. Eles estavam prontos para auxiliar os golpistas caso houvesse necessidade, até com unidades navais. Mas não foi preciso, pois o governo Goulart simplesmente ruiu, com pouca ou nenhuma resistência. Não houve intervenção americana, na realidade. Mas é evidente que os americanos estavam preocupados com o governo Jango e com a possibilidade da criação de uma imensa Cuba no Brasil - e, na retaguarda, apoiaram o golpe.
O que foram os Atos Institucionais?
Essa foi uma forma de legislar típica do regime antidemocrático, em oposição à atuação do Congresso. Na perspectiva dos militares, não havia condições de se implementar uma reestruturação do país pela via do Congresso, e então procuraram fazê-lo por meio do Poder Executivo (que eles chamavam de o poder constituinte da revolução). Os Atos Institucionais estabeleceram uma série de medidas: cassaram pessoas e mandatos de deputados, aposentaram funcionários públicos, extinguiram partidos políticos. Deixavam de lado o Congresso e emanavam da autoridade do general-presidente Castelo Branco. Eles guardavam alguma semelhança com medidas do passado, como os decretos-lei que Getúlio baixava durante o Estado Novo.
O que pretendia o governo do general Castelo Branco?
Os militares não eram um bloco homogêneo; eles se uniram pela perspectiva de derrubar o governo Goulart, mas depois disso continuaram divididos. Existia o chamado grupo da Sorbonne, mais intelectualizado, que pretendia fazer uma espécie de purificação democrática – eliminar a corrupção, os populistas, os comunistas e, feita a limpeza, reinstalar um regime democrático, baseado na ordem, com mais estabilidade. Do lado oposto estava a chamada linha dura, que acreditava na ameaça comunista e defendia total firmeza contra qualquer adversário do regime, sustentando que, para mudar o Brasil, seria preciso manter um longo período de ditadura. Castelo Branco se situava entre os homens da Sorbonne, entre os democratas conservadores e, nesse sentido, governou com a intenção de chegar o mais rápido possível à democracia conservadora, expurgando os inimigos do país. Mas, sob as pressões da linha dura, acabou cedendo.
Quem perdeu poder com o regime de 1964?
Em primeiro lugar, todas as forças do populismo trabalhista, com João Goulart à frente, tiveram de sair de cena: Brizola, da ala radical, políticos civis de prestígio, Juscelino, Jânio, a classe política perdeu com o movimento de 64. A liderança sindical trabalhista, as lideranças camponesas, as Ligas, os sindicatos rurais, os dirigentes dos sindicatos, todos foram desalojados, perseguidos e presos.
E quem ganhou com o golpe?
É difícil dizer, pois o regime militar durou muito tempo e, ao incentivar por exemplo a criação da grande empresa agrícola – que hoje chamamos agronegócio – e a constituição de grandes grupos empresariais, beneficiou esses setores. De modo geral houve estímulo ao consumo e à poupança e o reequilíbrio da economia, e isso, em última análise, favoreceu a classe média.
Qual a situação dos partidos políticos em 64?
A organização partidária mudou muito. Nos primeiros tempos, os partidos que vinham do período democrático, UDN, PSD, PTB e outros menores, continuaram a existir. Mas nas eleições estaduais de outubro de 1965, apesar de toda a coação no processo eleitoral, a oposição chegou a ganhar em alguns estados. Cresceu então a pressão da linha dura sobre Castelo Branco, sob o argumento de que, se ela fosse derrotada nas eleições, perderia força. O Ato Institucional número 2 extinguiu os partidos políticos e criou uma legislação para dificultar a formação de outros novos. Como resultado, estabeleceu-se o bipartidarismo, quer dizer, passaram a existir apenas dois partidos: a Arena, do governo, e o MDB, da oposição consentida.
Não havia oposição ao governo?
O MDB deu trabalho, não era tão consentido assim. Ulisses Guimarães e outras figuras expressivas se tornaram foco de oposição legal e, com o tempo, a estrutura do bipartidarismo se voltou, como uma espécie de bumerangue, contra o regime militar. Isso porque todas as insatisfações existentes, que cresciam cada vez mais, se concentraram no MDB. Era o partido que abrigava desde a extrema esquerda até os liberais de centro, e passou a representar uma força muito grande. Em cada eleição havia uma espécie de plebiscito pró ou contra o governo. O bipartidarismo acabou ajudando a oposição e, quase vinte anos depois, teve papel importante na abertura política.
Qual a influência da Escola Superior de Guerra?
O chamado grupo da Sorbonne, que percorreu todo o regime militar, era influenciado pela Escola Superior de Guerra, que hoje tem importância secundária, mas foi central na formulação de uma ideologia específica, não só militar como também civil, nos anos 50 e 60. A escola foi formada no Rio de Janeiro, com influência e presença de oficiais americanos e franceses. O modelo era o War College, dos Estados Unidos. Era a época da guerra fria, em que se via, de forma radicalizada, o mundo dividido em dois pólos – a União Soviética promovia o avanço da guerra revolucionária e os Estados Unidos assumiam a defesa democrática do mundo. O grupo formado pela Escola Superior de Guerra, castelista, era muito pró-Estados Unidos no plano da política externa mas, ao mesmo tempo, era de certa forma mais democrático, com uma perspectiva de não prolongar a ditadura militar. Os partidários da linha dura combinavam mais nacionalismo com repressão, com violência.
Quais eram as dificuldades do governo Castelo Branco?
A situação econômica estava deteriorada: contas externas desequilibradas, enorme déficit, inflação. Roberto Campos, que fora muito ligado a Juscelino, e Otávio Gouveia de Bulhões ocuparam o Ministério do Planejamento e o Ministério da Fazenda e tomaram uma série de medidas no plano econômico para reequilibrar o país e promover uma retomada do crescimento: segurar os salários e os gastos públicos, tornando estes últimos mais responsáveis. Ao mesmo tempo, tomaram-se medidas como a da correção monetária: gradativamente, os contratos e os salários foram indexados, quer dizer, ficaram sujeitos a uma revisão de acordo com a inflação. Era uma forma de evitar que os devedores do governo pagassem com uma moeda desvalorizada. De certo modo, esse governo introduziu uma realidade na economia e favoreceu uma poupança nacional, um dos objetivos dos militares. O Banco Central foi criado nessa época.
Foi alcançada a estabilidade da economia?
O regime autoritário facilitou a execução dessas medidas e, em grande parte, elas acabaram dando certo. Por exemplo, a implementação da política de contenção salarial foi facilitada, pois na época os sindicatos estavam amordaçados. Mas é forçoso reconhecer que, em suas grandes linhas, era uma política bem concebida; eles conseguiram de fato promover uma estabilidade da economia que, embora temporária, foi importante na evolução do regime militar.
O que houve de novo na Constituição de 1967?
Ela legalizou uma série de medidas implementadas pelos Atos Institucionais, como as eleições indiretas em todos os níveis. Em seu espírito estava a doutrina da segurança nacional, formulada durante a guerra fria. No mundo dividido entre duas forças, era preciso criar instrumentos deliberadamente autoritários, violentos, para que a segurança fosse preservada e o país não fosse contaminado pelo vírus da subversão.
Quem foi o sucessor de Castelo Branco?
O general Castelo Branco teve o mandato prorrogado contra sua vontade, mas seu grupo não conseguiu fazer o sucessor, que veio da linha dura: o general Artur da Costa e Silva. Sob muitos aspectos, ele era o oposto do grupo da Sorbonne: pouco intelectualizado, diziam que gostava mais de fazer palavras cruzadas do que de ler. Não era necessariamente “duro”: chegou a fazer pronunciamentos em favor da democratização, relacionou-se com civis moderados de oposição, mas acabou sendo uma ponte para a linha dura e o governo Médici.
O que significou o ano de 1968?
Este foi um ano muito especial no mundo inteiro. Houve um grande movimento popular na França, pela mudança não só das instituições, como também dos costumes políticos. Um dos lemas falava da imaginação no poder. No mesmo ano, e em outro contexto, aconteceram nos Estados Unidos os grandes festivais hippies de música, como Woodstock. Se não mudou o mundo, 1968 pelo menos sacudiu-o, em todos os planos, da política e também da cultura, vista como uma expressão mais ampla. Isso se refletiu no Brasil, em vários níveis, em uma explosão na cultura que pode ser resumida na frase de uma música de Caetano Veloso: “É proibido proibir”.
E no plano político?
Do ponto de vista político, o ano de 68 foi caracterizado por uma mobilização que se explica em grande medida por aquilo que já vinha ocorrendo: passado o primeiro momento do movimento militar de 64, as oposições foram se reerguendo. Isso redundou numa série de movimentos de classe média, como a famosa passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro, em defesa da democratização, após a morte do estudante Edson Luiz. Houve também a retomada do movimento operário, com diferentes direções, em geral exemplificadas em dois movimentos: um em Contagem, Minas Gerais, era reivindicatório e não propriamente agressivo; outro em Osasco, São Paulo, influenciado por formas de luta que lembravam a luta armada.
O que representou o Ato Institucional número 5?
Uma verdadeira revolução dentro da revolução, ou, se quiserem, uma contra-revolução dentro da contra-revolução. Em dezembro de 1968, a edição do AI-5 restabeleceu uma série de medidas excepcionais suspensas pela Constituição de 67. Voltaram as cassações e o fechamento político e todo esse fechamento não tinha prazo, quer dizer, o AI-5 veio para ficar. Há quem diga que o AI-5 foi uma espécie de resposta ao início da luta armada, mas em 68 as ações armadas eram poucas. Ao que parece, o fator desencadeante pode ter sido a mobilização geral da sociedade brasileira em 1968 e a convicção ideológica de que qualquer abertura redundava em desordem. Então, era preciso endurecer, fechar, recorrer a poderes excepcionais para combater a subversão. Isso é o que explica o AI-5.
O que estava por trás da luta armada?
A idéia de que seria impossível derrotar a ditadura por métodos pacíficos. A partir de 1968 começaram a surgir algumas ações, mas o auge foi depois do AI-5, nos anos de 69 e 70. O AI-5 fortaleceu a idéia de que os militares não se dispunham a abandonar o poder, e ficou claro que haveria cada vez menos brechas para a oposição. Essa idéia foi influenciada na época pelo êxito da Revolução Cubana, um movimento espantoso: um pequeno grupo guerrilheiro que se estabeleceu em Sierra Maestra, foi se estendendo e acabou, nas barbas dos Estados Unidos, por derrubar o regime de Batista.
Quais foram as principais organizações de luta armada?
Uma delas era a Aliança de Libertação Nacional (ALN), cuja figura principal foi Carlos Marighella, morto pela repressão. A ALN resultou de uma cisão do Partido Comunista; foi formada em fins da década de 60, por grupos do PC, pois este rejeitava a luta armada. Houve também o MR-8, a Vanguarda Popular Revolucionária (a VPR do capitão Lamarca, que rompeu com o Exército) - essas foram as principais organizações da luta armada.
De que modo o governo militar reagiu?
A luta armada fez sua aparição realmente espetacular a partir do seqüestro do embaixador americano Elbrick, no Rio de Janeiro (narrado no livro de Fernando Gabeira, O que é isso, companheiro?). Setores oposicionistas tiveram a impressão de que os grupos de luta armada iriam desestabilizar a ditadura, mas na verdade o regime militar desencadeou uma repressão violenta, feroz, atingindo até setores da sociedade que não integravam esses grupos.
A tortura foi um instrumento político da ditadura?
Somente em 1968 a tortura se tornou sistemática em todo o país, como instrumento político. Antes disso, ela era utilizada em algumas situações, com diferenças geográficas. Em São Paulo, por exemplo, não havia tortura em 1964, mas no Nordeste, sim. Gregório Bezerra, líder comunista conhecido em Pernambuco, foi amarrado e arrastado por cavalos pelas ruas do Recife; coisas horríveis desse tipo! Em 68 se instalou a repressão sistemática. Foram criadas organizações – como a Operação Bandeirantes, em São Paulo – que usavam todo tipo de violência para quebrar a oposição, principalmente a ligada à luta armada. Começaram a surgir em maior número pessoas violentadas, sacrificadas, mortas. O regime militar apresentou sua face mais obscura.
O que o regime ganhou, torturando pessoas?
Do ponto de vista dos militares, a tortura representou um instrumento poderoso para desbaratar os grupos de luta armada, que até nem teriam muita possibilidade de avançar depois de um primeiro grande impacto, mas foram mais rapidamente quebrados com a tortura, com as pessoas sendo forçadas a se delatar umas às outras. Isso acabou tornando a luta armada um rápido e trágico episódio histórico, um equívoco de enormes proporções, por mais que a gente respeite as pessoas que se sacrificaram nessa luta.
Em qual governo militar a repressão foi mais violenta?
Quando Costa e Silva ficou doente, foi afastado do poder. Marinha, Aeronáutica e Exército elegeram, a portas fechadas, um típico representante da linha dura, o general Emílio Garrastazu Médici, do Rio Grande do Sul. O nome de Médici está associado à face mais negra da repressão, nada na história brasileira se compara a esse período, nesse sentido. Ele se beneficiou de um momento econômico extremamente favorável, quando o país cresceu a taxas extraordinárias e houve uma espécie de melhoria nas condições de vida da população. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que estabelecia uma repressão muito violenta, atacando os setores politizados e articulados da sociedade, para o resto da população o regime de Médici era associado à prosperidade, aos tempos do “milagre econômico”.
Qual o papel dos meios de comunicação nessa política?
Havia intensa propaganda, que ressaltava os êxitos do governo no plano econômico – isso era o que mais podiam ressaltar, porque em termos políticos, em termos de presença popular, era difícil fazer propaganda. Por essa época começou o avanço da televisão como forma de comunicação no Brasil, que acabaria resultando no impacto desse veículo nos dias de hoje. Foi no governo Médici que se tornou possível estabelecer uma rede nacional de televisão. E isso foi feito pela Rede Globo, que na ocasião esteve muito colada ao regime militar, servindo como instrumento de veiculação de suas idéias. (A Globo custou, por exemplo, a perceber que o movimento das Diretas era uma manifestação popular de grande intensidade e que ela não poderia deixar de divulgá-lo e dar-lhe importância, sob pena de perder o compasso da vida política do país.)

E como foi a sucessão de Médici?
O regime militar foi relativamente estável, quer dizer, foi um condomínio que durou muito tempo, muito diferente das ditaduras argentinas, por exemplo. Somente os generais de quatro estrelas podiam chegar à presidência da República, e eram escolhidos por seus pares, a portas fechadas. O general Médici foi substituído pelo general Ernesto Geisel, indicando um fato curioso nessas sucessões: a tendência no poder não conseguia fazer seu sucessor. Aconteceu isso com Castelo, a Castelo sucedeu Costa e Silva; depois houve o interregno da morte de Costa e Silva, entrou Médici, aí houve certa continuidade, mas já o Médici, integrante da linha dura, foi substituído por Geisel, ligado ao grupo da Sorbonne, ao pessoal da Escola Superior de Guerra, ao velho grupo castelista.
Qual o papel de Geisel na abertura política?
Do ponto de vista político, o que representou o governo Geisel foi o propósito de, com muitas restrições, promover uma abertura definida por ele mesmo como lenta, gradual e segura. Ela foi lenta e gradual, mas não propriamente segura, porque ele teve de enfrentar adversários da linha dura, que praticaram atos violentos para impedir a abertura política. O próprio Geisel praticou atos repressivos, que de certa forma eram uma espécie de justificativa perante a linha dura, como se dissesse: deixem isso comigo, eu vou devagar e, quando for preciso, sei bater.
Por que ocorreu a abertura?
Não há uma causa única. Sem dúvida foi importante a mobilização popular, resultante sobretudo da insatisfação política. À medida que se tornava mais complexa, e isso tinha a ver também com o desenvolvimento econômico, a sociedade ia saindo da passividade dos tempos do “milagre”. Mas houve uma questão central no interior das Forças Armadas que levou os militares a promover a abertura. Com a repressão, haviam sido criados organismos que possuíam um “superpoder”, ou um “suprapoder”, sem respeitar a hierarquia militar; um coronel que chefiasse a Oban, por exemplo, possuía mais poderes do que a grande maioria dos generais. O Exército, que tinha como papel tradicional garantir a ordem, passava a promover a repressão. No interior das Forças Armadas, principalmente o grupo vinculado com a perspectiva de uma democracia conservadora foi levado à convicção de que era preciso, com cuidado, evitando mobilizações sociais, promover uma abertura política e reinstalar um regime democrático.
Geisel atuou contra a tortura?
Ele teve uma ação decisiva contra a tortura em São Paulo, onde duas pessoas de origem social muito diferente foram vítimas desse tipo de violência. As mortes do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho mobilizaram a sociedade: as pessoas saíram às ruas, enfrentando a dura repressão e, como Manuel Fiel era um militante católico, houve forte pressão da Igreja. Intervindo, Geisel removeu o general comandante do 2º Exército, em São Paulo. Com isso, não sem outros tropeços, a abertura política deu um salto.
Qual foi a atitude da Igreja Católica?
A partir de João XXII a Igreja se transformou muito no mundo, e especificamente no Brasil, onde sempre havia sido uma força conservadora. Surgiram figuras fortes de oposição ao regime, Dom Helder Câmara, o cardeal de Olinda e Recife, e Dom Paulo Evaristo Arns, em São Paulo, foram figuras destacadas de oposição ao regime militar. Ao lado deles, que podiam falar numa época em que todos eram obrigados a se calar, houve uma mobilização de base e uma radicalização de toda a Igreja Católica no período da ditadura.
Os trabalhadores influíram na abertura?
No fim dos anos 70, já no contexto da abertura, foi importante o surgimento do sindicalismo autônomo no ABC paulista (municípios de Santo André, São Bernardo e São Caetano). Esse sindicalismo autônomo, em que se destacaram dirigentes como Lula, o atual presidente da República, pode ser explicado em linhas sintéticas por algumas razões de estrutura empresarial. Essa região, principalmente São Bernardo, se tornou um grande centro da produção automobilística, inicialmente focada na Volkswagen. Reuniu-se aí uma massa trabalhadora que começou a estabelecer contatos e a ter uma vida sindical, ainda que clandestina; a vida das comissões de fábrica era uma experiência nova, diferente daquela de sindicatos patrocinados pelo Estado, os sindicatos oficiais do passado. A grande novidade social no fim dos anos 70 foi a explosão de movimentos grevistas, por reivindicações sobretudo salariais. A idéia de uma mobilização de base se estendeu por todo o país, mas não há dúvida de que o ABC esteve na vanguarda desse movimento.
Como se chegou à anistia?
Geisel conseguiu fazer o seu sucessor, e o último presidente militar foi o general João Batista Figueiredo. A linha dura ensaiou uma espécie de golpe contra a abertura, com a candidatura do general Frota, mas Geisel conseguiu se aliar a setores mais fortes, principalmente do Exército. O curioso é que Figueiredo, cuja missão era continuar a abertura política, era um homem que vinha do Serviço Nacional de Informações (SNI), um dos órgãos mais importantes de repressão nos tempos ditatoriais. Seja como for, no fim do período Geisel, o AI-5 acabou e a liberdade de imprensa foi restaurada; enfim, foram tomadas medidas importantes em direção ao regime democrático. Roubando de certo modo uma bandeira das oposições, Figueiredo estendeu essas medidas com a concessão da anistia. Decretou uma anistia abrangente, que acabava com as restrições às figuras políticas que tinham sido banidas – mas ao mesmo tempo estendeu essa anistia para os torturadores e os acusados de violência.
Houve resistência à abertura?
Embora os fatos fossem se sucedendo no caminho da abertura, a linha dura resistia a isso. Foram praticados atos violentos – por exemplo, uma carta-bomba enviada à sede da Ordem dos Advogados do Brasil feriu gravemente uma secretária. Outro atentado poderia ter causado um enorme desastre no Riocentro, num festival de música; mas a bomba acabou explodindo do lado de fora, na mão dos militares que a estavam conduzindo. É importante ressaltar que persistia a incerteza a respeito da volta da democracia, mas a tendência geral foi a da abertura política.
E quanto à organização partidária?
Uma das mudanças importantes ocorridas no regime Figueiredo foi o fim do bipartidarismo, uma camisa-de-força que estava se voltando contra o próprio governo. Surgiram então os partidos que, em linhas gerais, são os mesmos que conhecemos hoje. A Arena, que era o partido do governo, se transformou no PDS; o MDB colocou o nome “partido” antecedendo a sigla e formou o PMDB; Brizola voltou do exílio e registrou o PDT, como uma espécie de herdeiro das tradições do getulismo. A novidade maior foi a criação do PT, a partir do sindicalismo do ABC. Um partido importante nasceu de grupos da Arena que resolveram apoiar uma transição, formando uma oposição moderada com o nome de Frente Liberal – o conhecido PFL dos nossos dias.
O que mudou no país com o regime militar?
No plano político, as instituições democráticas desapareceram e a forma de governar e de impor uma legislação se tornou completamente diferente. Mudaram a vida do operário e o mundo rural, todas as velhas direções sindicais sumiram. Foi mantida a legislação sindical vinda do Estado Novo. Do ponto de vista econômico, apesar de terem ocorrido mudanças, pode-se dizer que foi sustentado o grande modelo, preservando a idéia do papel relevante do Estado como o centro da promoção da política econômica e do desenvolvimento nacional. Os capitais privados entraram com mais força, mudou-se a lei de remessa de lucros e reduziram-se as idéias de autarquia e protecionismo.
Qual a importância da economia mundial?
A política econômica – tanto a dos governos militares quanto a posterior – precisa ser sempre relacionada com o contexto financeiro internacional. Até os anos 70, mais ou menos, os países que hoje chamamos de emergentes dependeram muito de capitais públicos. Em primeiro lugar, os do governo americano: a Aliança para o Progresso era uma forma de financiamento, o FMI era outra etc. A partir dos anos 70, os emergentes – o Brasil e os demais – passaram a dispor de capitais privados particulares, os chamados petrodólares, dólares derivados dos grandes lucros obtidos com a exploração do petróleo, especialmente no Oriente Médio. Houve um lado positivo, porque o desenvolvimento brasileiro daquela época se baseou em boa parte nesses recursos externos. Mas, ao mesmo tempo, se criou um problema sério, pois os países emergentes se endividaram, e começaram a se agravar os problemas da dívida externa, do pagamento dos juros, do déficit externo. Essa torneira foi aberta nos anos 70 e fechada nos 80, sob novas condições econômicas mundiais, criando um constrangimento para os países emergentes. Então, toda vez que se fala de economia dos anos 70, do “milagre” etc., é preciso levar em conta um quadro que abrange as relações mundiais e as relações específicas das grandes potências com os países chamados emergentes, como Brasil, Argentina, Índia etc.
Como tais recursos foram utilizados no Brasil?
O regime militar, em vários momentos, foi associado à idéia da construção de um Brasil que estivesse entre os grandes do mundo, estabelecendo comparações com o Japão da época. Mas era uma fantasia. Dispondo dos capitais privados internacionais, ele empenhou-se em vários empreendimentos inexeqüíveis, ou que foram verdadeiros fracassos, como a Ferrovia do Aço e a Transamazônica. Mas realizou algumas coisas importantes, como Itaipu. De modo geral, os empréstimos conseguidos não foram desbaratados, e nisso o governo brasileiro se diferenciou da Argentina, onde muitos recursos foram canalizados para a especulação financeira.
O regime militar era mesmo uma ditadura?
Essa ditadura teve características curiosas, como a possibilidade de uma democracia, do ponto de vista ideológico. Poucos setores defendiam-na como o melhor regime para o país. Estava sempre presente a idéia de que em algum momento seria preciso retomar as instituições democráticas. O Congresso foi fechado por períodos curtos; apesar das cassações e do controle estrito do governo militar, era uma tribuna para a oposição, espécie de válvula para deixar escapar algo da panela de pressão do governo militar. As eleições eram controladas, o presidente da República era imposto, as dissidências eram reprimidas com violência, não havia liberdade de expressão, havia censura; só essa enumeração permite dizer: era uma ditadura. Mas essa ditadura tinha traços particulares.
E a questão do exílio?
A repressão militar originou um fenômeno que não era propriamente novo na história do Brasil, mas que alcançou então proporções muito maiores: o exílio. Algumas pessoas foram obrigadas a sair, outras partiram por se sentir ameaçadas, e se formou uma verdadeira comunidade de brasileiros no exterior. Muitos se tornaram até mais importantes como figuras públicas depois do exílio. Uma série de pesquisas revela que essa comunidade brasileira era a que mais desejava voltar, em comparação com as demais comunidades de exilados. O retorno de personalidades e intelectuais foi um momento de alegria na vida política, com a reintegração a um Brasil que ia se abrindo para a democracia.
O que foi o movimento das Diretas Já?
Um dos movimentos sociopolíticos mais importantes dos anos 80, durante o processo da abertura, defendia eleições diretas para a presidência da República e mobilizou a população de forma impressionante. Milhões de pessoas saíram às ruas, especialmente nas capitais do país. Apesar da ilusão de que uma eleição direta resolveria todos os problemas, a mobilização foi extremamente importante. Mas como não conseguiu ser aprovada no Congresso, por falta de quorum, gerou uma grande frustração. O processo de eleições indiretas, por sua vez, originou uma crise no governo militar. Alguns setores da Arena receberam mal a indicação de Paulo Maluf como candidato indireto, conscientes de que chegara a hora de estabelecer uma ponte com a oposição moderada. Foi então feita uma aliança em torno da candidatura de Tancredo Neves, que saiu vitorioso.
O que se esperava de Tancredo Neves?
Tancredo era um homem equilibrado, típico político mineiro, conservador, fora ministro da Justiça de Getúlio; como político experiente, talvez tivesse equilibrado a vida política brasileira nessa primeira fase de retomada do regime democrático. O fato é que, nesse caso, aconteceu uma tragédia pessoal que teve dimensões históricas. Infelizmente, Tancredo ficou doente e acabou morrendo. Não chegou a tomar posse, e o vice-presidente José Sarney, uma figura que vinha do regime militar, foi quem subiu a rampa do Palácio do Planalto. O nome de Tancredo ficou lembrado também pelas manifestações de dor que ocorreram em todo o país, desde os dias em que permaneceu no hospital até seu corpo ser conduzido a São João Del Rey, onde foi enterrado.

"É possível fazer a história do presente ou do quase presente, isto é, de fatos que aconteceram há pouco tempo. É a chamada história imediata. Com ela, o historiador se aproxima do jornalismo. A história imediata é influenciada pelas opiniões e pelas experiências de vida do historiador."

Como foi vista a posse do vice José Sarney?
Ele assumiu em meio a muita desconfiança, pois era bem diferente do presidente eleito. Embora moderado, Tancredo era um nítido adversário do regime autoritário. Sarney rompera com a Arena havia pouco tempo. E como o regime democrático estava dando seus primeiros passos, receava-se que o autoritarismo permanecesse disfarçado, ou até que ocorresse um retrocesso político. Sarney manteve o SNI, o Serviço Nacional de Informações, um órgão que vinha da ditadura, considerando-o adaptável a outro contexto, e isso trouxe críticas. Mas na verdade seu governo acabou garantindo um clima de liberdades democráticas.
O que marcou a política econômica?
Problemas que já existiam antes – descontrole financeiro, inflação enorme, déficit público – custaram ao governo uma grande queda de popularidade. Foi instituído então o Plano Cruzado, com uma nova moeda, como tentativa de reequilibrar a economia e, ao mesmo tempo, restaurar o prestígio de Sarney. Mas as medidas tomadas – aumento de salários e congelamento de preços – se revelaram equivocadas. Ocorreu um transitório momento de euforia, com uma corrida aos bens de consumo, mas a forte demanda abalou o congelamento – a inflação retornaria, com o fracasso do Plano Cruzado. Mas isso não estava ainda claro para a população no final de 1986, por ocasião das eleições: o PMDB conseguiu enorme êxito capitalizando o prestígio do Plano Cruzado. Alguns diziam que poderíamos estar embarcando numa espécie de monopólio do poder pelo PMDB, a exemplo do que ocorria no México com o PRI. Hoje sabemos que isso não aconteceu, pois o PMDB se dividiu e se complicou internamente.
O governo Sarney deu calote na dívida externa?
O final do governo Sarney foi melancólico. O Brasil decretou moratória, quer dizer, deixou de pagar a dívida externa. Ao contrário do que muita gente pensa, isso representou um sério golpe nas finanças do país; foi preciso muito tempo para restaurar o crédito no exterior e se livrar das conseqüências da moratória.
E o que dizer da Constituição de 1988?
A Constituição de 1988 surgiu após longos debates numa Assembléia Constituinte em que o PMDB tinha uma forte bancada, e resultou em um texto controvertido. Como aspecto positivo, há a garantia dos direitos dos cidadãos – por exemplo, o direito de obter informações nos órgãos do Estado, o direito das minorias, dos índios –, como nunca existiu no passado. Do lado negativo há o fato de ter sido aprovada em um clima nacionalista, dificultando reformas econômicas necessárias, e também seu detalhamento excessivo, entrando em questões que não são do âmbito constitucional. Isso aconteceu porque no Brasil não se acredita, ou não se acreditava, que as leis vão ser executadas; assim, os constituintes quiseram pôr na Constituição tudo que se considerasse justo.
Afinal, o que vem a ser uma democracia?
Existe um consenso básico a respeito do que seja democracia: é o regime em que aqueles que dirigem a nação recebem, por meio da eleição, um mandato popular. A idéia de que a soberania reside no povo e é ele quem elege seus representantes distingue a democracia de qualquer regime autoritário, totalitário. Ela também significa a garantia da livre expressão das idéias – não existe democracia onde existe, por exemplo, censura à imprensa. Inclui ainda deveres dos cidadãos, há uma responsabilidade com relação à sociedade e limites que não podem ser ultrapassados. A discussão maior consiste em saber se os aspectos sociais se incluem na definição de democracia. Há quem estenda o conceito e diga: não, democracia sem igualdade, sem maior acesso da população a todos os direitos de educação, saúde etc. não chega a ser democracia.
Como ficou o quadro partidário após a redemocratização?
A principal mudança foi a cisão no PMDB, devido à insatisfação de alguns de seus membros (Montoro, Covas, Fernando Henrique, entre outros) com os rumos que o partido estava tomando. Formou-se o PSDB, Partido da Social Democracia Brasileira. Ocorreram outras alterações que correspondem mais a mudanças de nome do que a outra coisa.
Como foi a sucessão de Sarney?
A disputa se concentrou, no segundo turno, entre Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor. Lula vinha do movimento de luta dos trabalhadores do ABC, tinha sido um importante líder sindical e era o grande nome do PT. Sua figura contrastava com a de Collor, homem da elite mas sem apoio de um grande partido, que utilizou com eficácia o marketing e temas de moralização. Afirmava, por exemplo, que iria combater os altos vencimentos de um setor do funcionalismo público, que qualificava como “marajás”, e com isso iludiu muita gente. Com trunfos desse tipo e o apoio da mídia mais poderosa, acabou se elegendo presidente da República.
Como se iniciou o governo Collor?
A inflação estava num nível insuportável, a economia, totalmente desorganizada, e era crença geral que ele iria mexer nesse quadro. E o que ele tentou foi de uma ousadia imensa: o seqüestro, ou, para sermos mais benevolentes, o congelamento dos depósitos bancários, abrangendo a poupança e outras formas de investimento. O Plano Collor provocou um choque na população. Houve queda pronunciada da inflação, mas logo ficou claro que não era um plano milagroso e conduziu o país a dificuldades ainda maiores. Além disso, a mídia começou a desvendar o alto grau de corrupção instalado no governo, mobilizando a população contra isso. Surgiu o movimento dos “caras-pintadas”, integrado principalmente por estudantes de classe média, e o pedido de impeachment do presidente foi aprovado pelo Congresso.
Qual a lição a ser tirada do impeachment de Collor?
Tiramos do impeachment uma imensa e positiva lição, que nos leva a um otimismo razoável sobre a vida política brasileira. Foi um episódio de substituição de um presidente da República pela via legal, sem golpe militar, sem manobra palaciana, uma coisa excepcional no quadro da América Latina. Sem negar o vulto da corrupção, personificada na figura de PC Farias, é preciso levar em conta que o impeachment foi facilitado pelo fato de Collor não ter sustentação nas grandes elites do país. Ele acabou isolado, com seu estilo olímpico, julgando-se acima de críticas. O impeachment de Collor foi antecedido por uma grande mobilização social nas maiores cidades do país. Mas é preciso considerar que o movimento das Diretas Já foi bem mais amplo, abrangendo praticamente o conjunto da população.
Como foi a sucessão de Collor?
Mais uma vez um vice-presidente assumiu o poder. Neste caso, não houve a morte de um presidente, como no mandato de Sarney, mas um impeachment, inédito na vida política do país. Itamar Franco vinha dos quadros do velho MDB mineiro e encontrara uma chance de escalar a política ao se candidatar a vice de Collor. Fez um governo de transição e implantou a URV (Unidade Real de Valor), um passo absolutamente necessário para instituir o Plano Real. Em minha opinião, essa medida e a escolha de Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda foram os méritos do governo Itamar.

Como foi a eleição de 1994?
A disputa pela presidência da República se deu essencialmente entre Lula, do PT, e Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. O caminho transitado por Fernando Henrique é excepcional na vida política de qualquer país, pois ele passou da esfera intelectual para a política. A formação de uma frente partidária, inicialmente PSDB/PFL/PTB, foi muito importante para garantir seu êxito eleitoral e também a chamada governabilidade, ao assumir o poder após a vitória no primeiro turno. Sua candidatura também foi beneficiada pela instituição da URV e pelo Plano Real.

O que caracterizou o Plano Real?
O Plano Real foi muito diferente dos planos anteriores, em primeiro lugar por acabar com a indexação da economia – um ciclo no qual à medida que aumentavam os preços eram elevados os salários, gerando novos aumentos de preço, e por aí vai. Evitou-se o congelamento de preços, experiência que se revelara negativa no Plano Cruzado – embora fosse uma medida popular, o congelamento acabava redundando em escassez de alimentos e em inflação. Houve também a introdução da nova moeda, o real, que ganhou credibilidade. Apesar dos problemas e dos ajustes, seu êxito é inegável.
Qual era o panorama mundial da época?
Na esfera mundial, um dos acontecimentos mais importantes foi a queda do Muro de Berlim, que simbolizou o fim da União Soviética e de seu sistema. Com isso, terminou também a guerra fria, que dividia o mundo em dois campos. Abriam-se os tempos da plena hegemonia americana, com sensível alteração nas relações internacionais.
O que é globalização?
Do ponto de vista econômico-financeiro, esse fenômeno está presente já a partir da década de 80. Trata-se de uma interpenetração de relações econômicas e financeiras, com dimensão planetária, em que os Estados Unidos figuram como pólo dominante. A globalização tem aspectos positivos – o intercâmbio comercial e cultural entre as nações é em si mesmo um fator desejável – e riscos reais. Por outro lado, se não houver medidas no sentido de limitá-la ou regulamentá-la, ela tende a acentuar a desigualdade entre países ricos e pobres. É um fenômeno complexo, um processo estrutural de modificações no interior do capitalismo, não se pode dizer que representa uma “armação”. A globalização veio para ficar, e é preciso uma regulação internacional para pôr limites aos excessos e permitir a distribuição menos desigual dos benefícios.
A globalização definiu novos blocos econômicos?
Com o novo quadro das relações internacionais advindo da globalização, mostrou-se necessário unir países, às vezes até abrindo mão de certos aspectos da soberania nacional. O exemplo mais relevante foi a formação da Comunidade Econômica Européia, hoje União Européia. Outro exemplo é a entre Brasil e Argentina, com a adesão do Paraguai e do Uruguai, para constituir o Mercado Comum do Sul, o Mercosul. O mérito dessa iniciativa deve ser atribuído ao ex-presidente Sarney, que tomou as primeiras medidas no sentido de formação do Mercosul, do lado brasileiro, com a colaboração de Raúl Alfonsin, então presidente argentino.
O Mercosul deu resultados?
O Mercosul avançou sob muitos aspectos, emperrou sob outros. Mas fez o comércio entre Brasil e Argentina se expandir extraordinariamente e pôs fim a uma velha rivalidade, que não tinha razão de ser. Sua implantação se revelou difícil, por exemplo, na questão da tarifa externa comum – o estabelecimento de um imposto comum para os produtos importados na área do Mercosul. Outra dificuldade está na adoção de regimes diversos de câmbio. Apesar de tudo, da atual crise na Argentina, talvez o Mercosul seja um destino histórico dos países que o integram.
Que repercussões o quadro financeiro internacional teve no Brasil?
Os desequilíbrios financeiros afetaram e afetam a performance do governo brasileiro e de outros países. No início do governo Fernando Henrique houve a crise mexicana, que forçou o governo brasileiro a tomar medidas defensivas dolorosas – por exemplo, a elevação das taxas de juros. Mais tarde veio a crise asiática, de 1997; a crise russa pós-comunismo, que resultou numa moratória, em 1998; e por fim a crise argentina. É preciso lembrar que o governo de Fernando Henrique ocupou dois mandatos (após ter sido aprovada uma alteração da Constituição autorizando a reeleição) e que nos últimos oito anos teve de navegar em águas perigosas diante de um quadro financeiro internacional instável, que golpeou vários países emergentes.
E quanto ao papel do Estado?
A partir dos anos 80 ocorreu em quase todos os países uma crise das funções tradicionais do Estado. No Brasil, tratava-se da crise de um modelo econômico implantado ainda na década de 30, no qual o Estado era produtor e incentivador de áreas importantes, por meio de subsídios, empréstimos favorecidos etc. Esse papel do Estado entrou em crise diante de sua incapacidade financeira e gerencial para atender a necessidades cada vez mais complexas. Assim, abriu-se caminho para as privatizações, fazendo com que o Estado passasse de produtor a regulador das atividades econômicas.
Que tipo de privatização ocorreu?
As privatizações começaram timidamente no governo Sarney, avançaram algo no governo Collor, mas foi no governo Fernando Henrique que ganharam força – nos setores do aço, da distribuição de energia e das telecomunicações. A Petrobras não foi privatizada, mas houve a quebra do monopólio estatal do petróleo, admitindo-se a concorrência de outras empresas.
Quais as medidas econômicas mais significativas no governo Fernando Henrique?
Ocorreram em geral avanços importantes no governo Fernando Henrique, no sentido de garantir a estabilidade da moeda e estabelecer a chamada responsabilidade fiscal, a partir do princípio de que não pode haver despesa sem a correspondente receita. Houve também um ganho considerável no controle da inflação, que representa uma espécie de imposto atingindo os mais pobres. As privatizações funcionaram melhor em alguns casos, pior em outros, mas seu balanço em certas áreas de serviços foi benéfico para o consumidor. Sem ignorar as tarifas elevadas, o telefone ficou ao alcance do povo, deixando de ser mercadoria de luxo, objeto de especulação. Coroando tudo isso, o governo Fernando Henrique concorreu para a consolidação das instituições democráticas, como se viu nas eleições de outubro de 2002 e na fase de transição após a vitória de Lula.
Qual a realidade do país que terá Lula como presidente?
Apesar dos avanços na área da educação e da saúde, as carências de parte ponderável da população brasileira são enormes e a distribuição da renda, após anos de melhoria, acabou regredindo. O governo Fernando Henrique marcou passo na área da segurança, no enfrentamento da violência, do narcotráfico (mesmo considerando que parte da competência para tratar desses problemas é dos governos estaduais). Nesses aspectos estamos chegando a uma situação-limite, muito angustiante. Também vivemos um quadro de desemprego para o qual não há solução fácil. Apesar dos pesares, governo e oposição avançaram muito, seja no respeito às instituições, seja no reconhecimento de princípios básicos na área econômica. Eleito presidente com uma significativa vitória, Lula e o setor majoritário do PT vêm demonstrando a compreensão de que a estabilidade da moeda, a responsabilidade fiscal e a luta contra a inflação não são objetivos deste ou daquele governo, e sim objetivos nacionais que devem ser assegurados por quem quer que detenha legitimamente o poder. Esperemos que, sem passes de mágica e evitando a tentação populista, o novo governo possa trilhar o caminho de maior justiça social e da redução da violência, pois o povo brasileiro bem merece isso.

Boris Fausto- Professor da USP

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